Como as viagens de Alexander von Humboldt influenciaram “O Navio negreiro” de Castro Alves

Em seu artigo o Professor de Letras Alemão da Universidade Federal do Paraná, Paulo Soethe, mostra um interessante exemplo de transferência literária teuto-brasileira, que ganha ainda mais importância pelos achados da pesquisa interdisciplinar humboltiana. Ele descreve o caso de dois textos literários que surgem do diálogo que se deu no espaço transatlântico entre o Brasil e a Europa de língua alemã sobre a inevitável questão da escravidão, são eles: “Das Sklavenschiff” (1854) de Heinrich Heine (1797-1856) e “O navio negreiro” (1868) de Castro Alves (1847-1871). A fonte, direta ou indireta de ambos os textos, já considerada no caso alemão há alguns anos, mas nunca comentada no caso brasileiro, é: Essai sur l’Ile de Cuba de Alexander von Humboldt.
 
No “Essai sur l’Ile de Cuba” (Ensaio sobre Cuba) Alexander com Humboldt escreve algumas observações sobre a escravidão, ele mostra de forma objetiva sua rejeição a escravidão. Graças à edição digital dos diários de viagem da América do Sul (Humboldt 2019), ficamos sabendo que Alexander anotou a fonte que corresponde a passagem que Heine descreve no poema “Das Sklavenschiff”.
 
No diário de viagem, pode-se ler o seguinte:
 
Horribles crautés [sic] qui s’exercent à bord, des Capitaines qui chatient [jusqu’]au sang les jeunes filles qui se refusent de coucher avec eux, on les fait dancer dans les chaînes pour se donner du mouvement. On se sert d’un fouet de 9 traits que[?] pour les faire dancer et chanter, on les couvre de sang, au bord du Ruby on leur fait chanter[:] Messe, messe[,]  Macqerida[,] c. a d. que l’on vit gaiement parmi les blancs. Evidence of Mr. James Arnold.
 
            Essa fonte, anotada por Humboldt é James Arnold, que foi médico no navio negreiro Ruby, ele relatou à Comissão Parlamentar sobre a Abolição do Comércio em 1789 que era costume do capitão do navio obrigar as mulheres que se recusavam a dormir com ele a dançarem no convés por uma ou duas horas, alegando como motivo conservar-lhes a saúde. As mulheres eram empurradas umas contra as outras, cantando ou dizendo “Mexe, mexe, ma’querida” (Mexe, mexe, minha querida), palavras que lhes haviam sido ensinadas.
 
Hoje no Brasil “Das Sklavenschiff” é um dos poemas mais populares do poeta judeu-alemão. Heinrich Heine era bastante conhecido entre os românticos brasileiros, um exemplo claro de sua reverberação na literatura brasileira é, sem dúvida, a obra de Castro Alves, o famoso “O Navio negreiro” foi projetado em dialogo com “Das Sklavenschiff “. O que mais conecta os dois textos é a cena, na qual os africanos são forçados a dançar no convés da embarcação em uma situação humilhante.
No poema alemão, o procedimento brutal é explicado pelos autores do crime como sendo uma medida racional e médica. Heine não só expõe a dimensão sádica e desumana do procedimento, mas também explica seu verdadeiro motivo: o aumento do lucro. O texto de Heine, assim como o de Humboldt, ataca de forma satírica e com muita ironia o relato desses traficantes, que tentavam justificar seus atos discursivamente de forma racional. As últimas três estrofes da Balada de Heine apontam para essa ideia através do contraste entre o cálculo econômico cínico e a formalidade de uma prece religiosa:
 
E denderendém e tataratá –
A estranha festança não tem fim.
No mastro do traquete, van Koek
De mãos postas, rezava assim:
 
“Meu Deus, conserva os meus negros,
Poupa-lhes a vida, sem mais!
Pecaram, Senhor, mas considera
Que afinal não passam de animais.
 
Poupa-lhes a vida, pensa no teu filho,
Que ele por todos nós sacrificou-se!
Pois, se não me sobrarem trezentas peças,
Meu rico negocinho acabou-se.”
(Heinrich Heine, 1854 - Tradução de Augusto Meyer)
 
O poema brasileiro ressoa o texto de Heine, que Castro Alves deve ter tido contato através da tradução em francês de Gérard de Nerval, na medida em que retoma a cena na qual pessoas escravizadas são obrigadas a dançar e é uma representação poética do sadismo racional infundado e do sofrimento infernal das vítimas:
 
Era um sonho dantesco... o tombadilho  
Que das luzernas avermelha o brilho, 
Em sangue a se banhar. 
Tinir de ferros... estalar de açoite...  
Legiões de homens negros como a noite, 
Horrendos a dançar...
 
Negras mulheres, suspendendo às tetas  
Magras crianças, cujas bocas pretas  
Rega o sangue das mães:  
Outras moças… mas nuas, espantadas,  
No turbilhão de espectros arrastadas, 
Em ânsia e mágoa vãs.
 
E ri-se a orquestra, irônica, estridente... 
E da ronda fantástica a serpente  
Faz doudas espirais ... 
Se o velho arqueja… se no chão resvala,  
Ouvem-se gritos... o chicote estala. 
E voam mais e mais...
 
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
 
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
 Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."
(Castro Alves, 1868)
 
Pesquisador: Paulo Soethe (UFPR, Curitiba)
Fonte: Soethe, P. A. Alexander von Humboldt im nicht bereisten Land: literarisches Wissen im Vorfeld einer späten Rezeption. No prelo. (2020)

Autor: 
Bruna Senke Marcelino
Data de Publicação: 
29/09/2020
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